três da manhã

Hoje o homem que por quem tanto escrevi, me arranhei e me destruí, morreu.
Sempre guardei o nome, o toque e a sombra em segredo, mas hoje enquanto andava pelas ruas da minha cidade, o meu coração parou.
Ou o quer que seja que restou dele.
Foi num instante de segundo, meti o pé na estrada, e as coisas caíram-me todas no chão.
Se a vida sempre foi confusa para mim, então do nada ficou vazia.
Procurei incansavelmente por ti dentro de mim, mas não havia sinal nenhum.
Não me arrepiei, não te senti, não te vi atrás de mim, não ouvi música nem perdi a força nas pernas.
Ficou tudo a passar tão devagar, e sufoquei-me com o teu nome.
Queria chamar-te, ou pelas alcunhas que te dei quando falava de ti em público, mas não saiu som nenhum.
Não nos encontrávamos há já tanto tempo, e a única maneira que tinha de saber que estavas vivo, era quando falava contigo para dentro de mim.
Perdi a conta das vezes em que olhei para cima, e te falei.
E a única certeza que tenho agora mesmo, é que o vou continuar a fazer.
Há amores que são assim.
Hoje em dia descartamos cartas, poemas e músicas, porque temos o telefone no bolso, o computador em casa, e tudo aquilo que pode realmente unir uma alma à outra, deixou de existir aos olhos das pessoas.
E eu nunca quis ser uma pessoa.
Mas ainda sou daquele tipo de gente, estranha e sem muito a perder ou a dar, que acha que o amor só existe, se conseguires falar com a pessoa por quem sangras sem estares ao pé dela.
E do nada, num dia em que a tua ausência nem me estava a maçar muito, senti que qualquer coisa foi arrancada de mim.
Tentei puxar pelas pessoas que estavam ao meu lado, mas ninguém me ouvia.
Estavam todos petrificados, a olhar-me nos olhos sem alma, todos tão compostos e tão vazios.
Todos tão diferentes de ti.
E todos tão iguais a eles mesmos.
Continuei pelas ruas e nem olhei para trás.
Nem sei o que ficou no chão.
Assim que meti a chave na fechadura, e a porta de casa se abriu, se bem que mais depressa do que até à data, a minha casa já não era a mesma.
Não havia luz nenhuma de por-de-sol a entrar-me pela janela, não conseguia ouvir o meu pai tocar por muito que fechasse os olhos, e o quarto, o quarto estava vazio.
Passei pela casa de mão na parede, de uma ponta à outra, da mesma maneira que fiz em todas as noites que cheguei sem ti, e nada.
Não te senti.
Nada de nós os dois, no único sitio em que pude dizer o teu nome.
Esta casa está cheia de demónios, mas pela primeira vez, não me respondeu.
Não me abraçou, não me disse "Um dia tudo dá certo".
Não havia roupas, não havia lembranças, o meu computador não tinha nada nosso, e se algum dia pus uma foto tua na casa que tanto te esperou, já não estava nada nas paredes.
Peguei no telemóvel, e nas conversas que tanto partilhámos, quebrou a meio.
Não te consegui ligar mais, e esqueci-me do teu nome.
Tive lembranças pequenas da tua cara e da tua boca, mas por muito que tentasse, esqueci-me de ti.
Então, meio de mundo aos pés, meio morta por dentro, deixei cair tudo mais uma vez.
Ainda estou a gritar, ainda faz eco na casa vazia que nunca se tornou em mais que nada.
E desfeita por dentro e por fora, olhei-me ao espelho.
Toda borrada, cheia de sangue de coração quebrado, e de marcas dos caminhos que percorri.
E no meio do pior cenário que esta casa já testemunhou, vi-te.
A olhar à tua volta, cheio de incertezas e meio confuso.
Atrás de mim, como sempre.
Quis tanto tirar a fotografia mental de nós os dois juntos.
Quis tanto pegar em ti, e levar-te para algum sítio em que mais ninguém nos visse.
Quis tanto estar dentro de nós os dois.
Senti-me tão feliz, por naquele momento, estares onde devias estar.
Mas por muito feliz que estivesse, e por muito que estivéssemos lado a lado, não estávamos juntos.
O espelho em que te vi, e nunca estiveste, não fez justiça ao momento em que finalmente nos encontrámos.
Desta vez não tinhas a mão em lado nenhum, não respiravas como até à data, nem tinhas o brilho meio apagado nos olhos.
Estavas só a olhar à tua volta.
Meio quebrado, meio tonto.
És tão alto, e nunca te vi tão pequeno.
Virei-me, e olhei-te nos olhos.
Abanei-te, gritei por ti.
Citei-te frases nossas, e quando te tentei abraçar, não consegui.
Continuei parada no tempo, tu continuaste a olhar à tua volta.
A cheirar o quarto, e a folhear o livro que deixei em cima da mesa de cabeceira.
À frente do espelho, em que tanto te vi.
E quando me virei, para ter uma imagem de nós os dois no espaço em que nunca deixei mais ninguém entrar, só te vi a ti.
Fui eu que morri.



Comentários

  1. Sem palavras. Esse final matou-me

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  2. Inês, o que te vou dizer aqui vai parecer ridículo, mas tu já viveste muitas vidas. E Impossível Uma Miúda De Vinte E Poucos Anos Escrever Assim... Só Quando Já Se Viveu Muito é que se tem uma alma assim tão velha e escura. Adorei.

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  3. Chamem a polícia... Chamem a polícia...

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  4. Nunca te consigo parar de ler, desde que começaste o quero te Inês que sou fã. Tenho reparado que há coisa de uns seis meses os teus contos, são quase de certeza para o mesmo homem, rapaz, etc. Só quero dizer uma coisa, ainda bem que ele existe porque senão não líamos isto... E faz tão bem ler isto. Mas por outro lado, que granda atrasado mental e cego que o gajo deve ser ouve lá! És uma mulher bonita, inteligente, diferente, tens o bónus de ouvir boa música e teres talento. E quê? Ele não entra em tua casa nem se mete a frente do espelho? A única desculpa é se ele viver na Índia, e mesmo assim se fosse eu já tinha apanhado o avião. És demasiado totoloto para deixar passar. Mas ainda bem que ele, se é que existe deixa passar. Tamos cá para isso. Continua miúda!

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    1. "tamos cá para isso", you know. let the games begin. ines I love you

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    2. Escrever é uma coisa, realidade é outra.

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  5. Sou um fã confesso...Uma escrita com um nível muito altíssimo.

    A forma como escreveste o artigo, é qualquer coisa que a maioria de nós, se não passamos vamos passar de uma forma ou de outra. A forma como passaste a mensagem é que não está ao alcance de todos.


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  6. http://teresaraquelseculoerrado.blogspot.pt/

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