Pai,


O meu pai, disse uma vez enquanto me olhava de lado, "Muitos corações há-de a minha filha partir."
Nessa altura tinha cabelo loiro pela cintura, e dizia-lhe "Pai, eu nunca vou gostar de ninguém."
"Vais sim, e vai ser desastroso de tão bonito que vai ser."
Não cresci como a maior parte das miúdas.
Cresci a pintar nos bastidores, cresci no meio de músicos, cresci no meio do fumo e cresci com a ideia, que amar alguém, só faz sentido se o virmos por dentro.
Cresci no meio de discussões, entre dois mundos, e cresci a ser só apaixonada por uma pessoa.
Por ti.
É por isso que escrevo, que estou onde não devia estar, e que me apaixono por quem não devia.
Disse-me uma vez, que se ele se fosse mais cedo do que era suposto, não me esquecer que eu era metade de Zé Alegre, numa cidade cheia de nada.
"Amei a tua mãe, porque te amo a ti. Tu, sempre tu."
Escrevo tanto sobre amor, e nunca entendi, o quanto procurei alguém igual ao meu pai.
Nunca o ouvi meter-se com uma mulher, nunca o ouvi a falar mal de alguém, nem nunca o ouvi a gritar-me aos ouvidos.
Vi-o a ser violento uma vez, e foi por mim.
"Com a minha filha, não."
Nunca fui uma adolescente fácil.
Não chegava a casa às horas que me eram pedidas, não fazia o supostamente certo, e a maior parte das vezes não era a miúda que deixava orgulho numa sala cheia de professores.
E mesmo assim, nunca me disse nada para além de, "Tenho o maior orgulho em ti."
Nunca fui aluna cheia de méritos, nunca fui o orgulho normal de um pai, e nos dias que importava aparecer, deixava-me ficar em casa, porque não queria ser igual a todos.
Fiz a minha primeira tatuagem aos dezassete anos.
"Pai, amo-te."
Meti em Inglês, porque achei que soava menos mal.
Vi o meu pai cair tantas vezes, que as quedas dele tornaram-se nos caminhos, que sempre tentei pisar.
O dinheiro nunca importou em casa, porque se lhe faltou, a mim sempre me sobrou.
"Tenho vinte euros na conta, mas sou feliz."
Pegava em mim e levava-me a concertos ao vivo, a festivais, e estando quase sempre sozinho, nunca me escondeu o quanto queria voltar-se a apaixonar.
"Se não me apaixonar, pelo menos sei que conheci a mulher da minha vida."
Mas apaixonou-se.
Casou-se, e fui eu que assinei os papéis de amor.
Dizia-me muitas vezes em voz baixa, e de sorriso no rosto, "Eles não entendem."
Mas eu sempre o entendi.
Tivesse agora a idade que tenho, ou oito anos.
Oito anos de pouco amor, mas oito anos de amor incondicional por ti.
O meu pai foi o primeiro motivo pelo qual dei o meu primeiro soco, pelo qual não me quis apaixonar, e pelo qual não quis ser mãe.
Não porque não era tudo aquilo que sempre sonhei, mas porque via a cara dele sempre que me via sair de casa.
Vim de um amor quebrado, e talvez tenha sido por isso que saí em peças.
Nas mil e uma noites em que nunca lhe disse nada, em que me perdi e nunca mais me encontrei, o olhar era sempre o mesmo.
"Inês, se algum dia te acontecer alguma coisa, a minha vida perde o sentido."
Vi o meu pai chorar por amor, e vi-o sorrir porque o voltou a encontrar.
Tinha oito anos, quando me agarrou pela mão e ao passear comigo na doca de Faro, me disse "Inês, o amor é para os loucos . Espero que não te tenha passado por sangue, a forma como amo."
Ó pai, soubesses tu metade das minhas loucuras, e soubesses tu por quem choro amor.
Foste tu que me educaste assim.
Foste tu que me disseste para andar de nariz erguido, foste tu que me ensinaste o que é ser mulher, o que é ser diferente, e o quanto é melhor vir de um amor em peças, do que não vir de amor nenhum.
Foste tu que me mostraste o quanto não ouvir os outros, faz todo o sentido quando se quer ser feliz.
Foste tu que me disseste que não tinha mal vestir-me diferente, sorrir diferente, e foste tu que me ensinaste a posicionar a mão, se algum dia tivesse que me defender.
Escrevi a casa de cima a baixo, e nunca discutiste.
Nunca discutimos.
Vinte e três anos, e nunca chorei por nós.
Chorei por ti.
Nunca por nós.
Olhavas para mim da maneira mais doce, que alguém algum dia me olhou.
"Inês,não gostes tanto assim de mim. Eu sou só um gajo normal, de guitarra nas mãos e sem futuro certo."
No outro dia estava sentada na casa que te recebeu com vinte e dois anos, e me deste aos vinte e um, e ouvi um psicólogo dizer que "Os pais nunca devem ser os melhores amigos dos filhos".
Pensei para mim mesma, "Este psicólogo nunca viu as madrugadas da Inês e do José Alegre."
Se um dia este barco chegar a algum lado, não o devo a mais ninguém sem ser a ti.
És a prova viva do que me dizias quando nos ríamos das pessoas na rua, de mão dada.
Andei contigo de mão dada, mais do que um dia vou andar com quem quer que seja.
Foste sempre tu, e só tu, que me educaste.
Foste tu que me fechaste no quarto a ouvir boa música.
Foste tu que me falaste de noites mal resolvidas.
Foste tu que me disseste a diferença entre sexo e amor.
Foste tu que me deixaste ler os teus diários.
Foste tu que atendeste os meus telefonemas de madrugada.
Foste tu que te meteste entre mim, e dois passos de cair.
E a realidade, é que não sei se estava aqui, senão fosse por ti, pela tua guitarra, e pela vontade de viver que me deste.
"Eles querem que sejamos todos iguais, mas tu és minha filha."
Foste uma família de vinte pessoas, e encontrei-te sempre em todas as esquinas que pensei não estar ninguém.
Cheiras a pai, e foi no teu abraço que encontrei amor.
"Um dia, as coisas vão fazer sentido."
Foste, e sempre serás, o homem da minha vida.
Se ser pai é sempre menos do que ser mãe, então não sei o porquê de seres tudo num.
O que eles pensam que se lixe.
Continuas a ser o melhor, todo vestido de preto, e apaixonado pela ideia, que os nossos sonhos um dia, valem a pena.
Continuo a não querer ser mãe.
Mas se um dia for, então vai ser por ti, que vou tentar deseducar e ensinar que nem sempre, ser igual a todos é bom.
Amo-te pai.
Para sempre.


Comentários

  1. "A minha filha é tão bonita, vejam como é bonita"- Pai babado no corredor do Liceu de Faro.

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  2. No outro dia li um livro do teu pai. Dedicou-o a ti. "Para a minha Filha Inês, que nunca deixou que as pedras no caminho, construíssem muros entre os nossos corações." (uma coisa assim)
    As pessoas sabem que ele também escreve?
    Passou-te o amor pelo sangue, e as letras.
    Beijo

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  3. Que texto tão bonito Inês. Impossível não chorar. Para quem sente as coisas assim

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  4. Tão Linda Inês :)
    Emocionaste-me com as tuas palavras,o teu pai é com certeza o pai mais feliz do mundo por te ter na vida dele. E por sentir que o amor vence sempre e que constrói! Constrói Sempre! Um beijo enorme nos vossos corações <3 Ah granda Zééééééééééé!!! Isa de Brito

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