A espera.

Às vezes, ainda me recordo das palavras da minha avó ao ouvido: "É um dom sabes, esse das palavras. Esse da facilidade em dizer aquilo que vai cá dentro. Não somos todos assim." 

O tempo passou e eu realmente comecei a compreender que a facilidade nem sempre se traduz na pacificidade da vida, nem dos momentos, nem sequer na compreensão que as pessoas mostram ter, por muito articulada que sejas. Nós lemos aquilo que queremos ouvir, ou não é assim?

Alguém me partiu o coração, então eu transformei a dor em palavras, e servi a refeição a quem a quisesse comer. Implacável para alguns, pouco inteligente para outros; mas o que eu queria mesmo era poder cuspir as palavras que nunca gritei. Dizem que é uma das formas mais lentas de se morrer; e eu gosto de estar viva. Gosto muito. De saber que sou minha e que vou ser eu a encerrar o espetáculo.

Ninguém vai falar por mim, nunca serei conhecida por ser alguém de alguém; "Deixa-me pelo menos aqui, na minha vida, ser eu a minha personagem". (pedia eu aos céus e a quem me ouvisse)

Então fiz de tudo; escrevi um livro que nunca fez justiça ao que quis dizer, reconheceram-me pelo nome e pela dor (uma forma muito estranha de ser reconhecida, mas era a minha) e tentei recriar um regresso, que nunca teve partida.

"Cá vai, agora é que é. Morri afogada e fui eu que me salvei", mas era mentira. Era tudo mentira; e tal é o passo que precisas de dar, para compreender que na tua própria terapia, eras tu que te mentias a ti própria?

É preciso um bocadinho, é preciso ires até ao fundo e teres a mão bem assente na areia para saberes aquilo em que não queres mais tocar. 

Então tal e qual como alguém que agarra num punho de terra que acabou de comprar, e se satisfaz com os grãozinhos a escorrer pelos dedos, eu mexi e mexi na areia.

Queria conhecê-la, entender como é que as minhas mãos acabaram ali, mexendo e remexendo naquilo que nunca foi, que nunca seria, que nunca haveria de ser.

Escrevi tantas vezes sobre esse momento, sem sequer fazer ideia ao que sabia ou ao que soava.

É uma mistura das vozes que pensavas que conhecias, um hino muito feio de gente que prometeu dar-te a mão mas que te passaram uma rasteira; é a sensação de sujo nas mãos, já que foi dada mas não recebida, e é um sabor agridoce.

O mais agridoce, a coisa mais horrível de digerir. O fechar a porta mesmo sem força para abrir sequer a janela, o aguardar que alguém bata à porta, mas já doer as pernas da posição constrangedora em que os pés acabaram por se entrelaçar; a espera.

Essa espera que todos aguardamos mas que vemos passar à frente dos nossos olhos, tenha ela a forma que tiver. 

Para alguns é o amor da nossa vida, bonito e de sorriso no rosto, batendo à porta quando se prepara para nos rever tantos anos depois; para outros é só um abraço de um amigo que por alguma razão se afastou e tomou outra rota, mas que esperamos muito que um dia pare para se sentar na nossa mesa; para outros é o abraço que nunca soube a casa; para outros é tudo junto e isso dá-nos essa refeição... essa dificuldade em digerir.

Claro que a capacidade de respeitarmos as dores dos outros, não vem necessariamente nem da nossa dor, nem do que nos serviram à mesa.

Às vezes, vem mesmo connosco, e nem todos conseguimos dar mais além do que aquilo que fomos prometidos. 

Há quem esteja reservado a pouco, a muito pouco. Talvez ao reflexo, a mais pequenina forma de visão do espelho.

A esses, vida longa e morosa, maxilar forte e destemido, porque como também já me dizia a minha avó "Há quem só tenha comido côdea, e já ache que comeu o pão amassado pelo Diabo."

Talvez um dia, eu deixe de me ver sentada ao computador com vinte anos a querer muito compreender aquilo que fez prender tanta gente à minha escrita.

Talvez um dia eu até o reencontre, tenha mesmo esse título sensacionalista; consiga comer com menos dificuldade essa falta à mesa; essa ausência de companhia e de barulho de dedos na porta; Talvez um dia, consiga tirar as palas dos olhos e entenda que na mesa que fui construindo há quem brinde, quem berre, quem bata na mesa e acorde a vizinhança inteira.

Mas por enquanto, e só por enquanto, voltei a escrever para mim mesma. 

Não existem títulos sensacionalistas nem palavras de regresso. 

Ninguém regressa do sítio em que não esteve.

Mas todos podemos regressar do sítio em que não queremos estar, às vezes perdem-se umas personagens, a malta ganha calos e cicatrizes; rugas no pescoço e nas feições, porque a troca entre sorrisos e espanto é muita; confunde os músculos e a rota, mas no fim (e desse eu acho que posso falar) o que importa é essa mesa.

Nem sempre sobre quem se senta nela, mas o que lhe consegue pôr em cima.

E a fome é muita, e eu que estou farta de estar tão magra bato as mãos uma na outra e vou passando entre as mesas, petiscando ali e acolá; fazendo das tripas coração e do coração tripas, para que talvez um dia, consiga voltar a servir banquetes.

Daqueles que juntem gente de todo o lado, pés em cima da mesa e histórias de desconfiar; as minhas preferidas.







Comentários

  1. Mas que regresso lindo, querida Inês! Com tanto para dizer, esse coração... essa alma. E uma vez mais, brilhantemente conseguiste. Tive que ler várias vezes, para ver se te continuo a imaginar com 20 anos, agarrada ao computador a pensar e a questionar o que prende tanta gente à tua escrita! E o melhor é que eu sei... mostras a bonita da tua alma, sem papas na língua e isso prende. Obrigada!!!

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  2. Que bom ler te novamente 🤍

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  3. Muito lindo!!! Muito bom mesmo incrível Inês

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