Nunca te apaixones por um artista.

O problema de te apaixonares por um artista é que todos os caminhos que percorreste enquanto te apaixonavas, estiveste e demoraste a não estar, tornaram-se em arte.
A arte não sai de ti enquanto te "desapaixonas" (se é que isso existe ou funciona sequer).
Permanece em algum sítio que por muito que tentes, nem sempre podes arrancar de ti.
Talvez isso aconteça porque existam pessoas, pelas quais ficas eternamente apaixonada.
Quem sabe o nosso instinto de sobrevivência meta-as só num canto tão fundo de nós, que pelo bem do nosso futuro, nunca mais as consegues de lá tirar.
É um rótulo.
O rótulo daquilo que não chegou a acontecer nas nossas vidas.
O frasco cheio de momentos quebrados e promessas falhadas.
É uma parte de uma prateleira qualquer, que vive em ti da mesma maneira que as memórias o fazem.
É possível voltar, mas nunca abandonar o barco de vez.
Defini-te como pessoa, como futura namorada.
Define as tuas futuras conversas e os sítios em que vais deixar de gostar de estar.
Tornas-te em outra pessoa, e começas a duvidar se algum dia te conheceste.
Porque afinal de contas, como pode alguém num tão curto espaço de tempo, fazer-te conhecer quem esteve contigo desde sempre?
Tu?
Sabes lá.
Só sabes que agora as coisas que não faziam sentido em ti, tornaram-se óbvias, e isso começa a assustar-te.
Num mundo perfeito e quase que ideológico, poderíamos ter sido felizes à nossa maneira.
Não digo para sempre, nem até sermos velhos e esquecidos de dias e noites.
Mas pelo menos até que a vontade de criar mais de nós mesmos se esgotasse.
Provavelmente teríamo-nos morto um ao outro em alguma ocasião.
Eu nunca te deixaria partir, nem que isso implicasse tapar-te a boca durante o sono.
Isso é amor.
Aquele amor doentio e possessivo que origina livros bonitos, filmes que esgotem e músicas que nos façam querer cortar os pulsos.
Éramos nós, e mesmo que não fosse o mais certo, a arte só é verdadeira aos olhos de quem a vê.
E eu vi-te.
Teríamo-nos dado bem, não todos os dias mas na maior parte deles.
Se eu recuar muito no tempo quase que consigo ver um homem e uma criança num muro qualquer da minha cidade, a olhar para o nada que ele sabia ser a única coisa que lhe poderia vir a dar.
De guitarra ao colo passa-lhe a mão na testa e diz-lhe "Nunca te apaixones por um músico, nem por um pintor, nem por um escritor. A arte vai dar cabo de ti."
Nasce em mim um sorriso e uma vontade incontrolável, de seguir o caminho contrário à vontade de todos.
Eu sabia já aí que havia qualquer coisa a mais que sangue a correr-me nas veias.
Nunca me achei diferente dos outros, só nunca achei ser igual a mais ninguém.
Há coisas que só entendemos quando as deixamos ir.
Quando paramos de tentar controlar aquilo que realmente não nos pertence.
O principio e o fim do amor, o tempo e as voltas que a vida dá.
Por muito que tentes, há coisas que te vão escorregar pelas mãos porque nunca foram tuas para as puderes agarrar.
Uma das lições valiosas que aprendi a amar-te, e a deixar-te ir.
Tu não eras meu, e eu não era tua.
E por muito que te tivessse morto no sono para ter a certeza que dormias a meu lado para sempre, a arte que corre em mim só o fez nos sonhos.
É uma desintoxicação, quase tão parecida ao largar uma droga qualquer.
A maior parte das pessoas apaga o número de telemóvel, sai das redes sociais e chora no colo de quem ache que os pode vir a compreender.
Mas não quando te apaixonas por um artista.
Apagar o número ou fingir de conta que nunca aconteceu, não funciona para pessoas iguais a mim.
Tens de pegar fogo aos livros, destruir as músicas e rasgar as fotografias aos sítios que tiraste, na esperança de um dia voltares com companhia.
Tens de refazer os caminhos, vomitar sem motivo e deixar-te de dormir para o mundo.
Porque o que acontece, é que se não dormires o tempo necessário, podes nunca mais te encaixar no sítio onde sabes que foste feliz.
Tens de te despedir de ti também, do que conhecias antes e do que conheceste depois.
Tens de respirar fundo mais do que o normal, pôr dedos dentro de feridas e quem sabe alimentares-te de desgostos de amor que podes ou não vir a despertar.
É a única maneira que tens de saber que estás viva.
Veres os outros morrerem.
O olhar doentio e afastado da realidade com que olhavas para as coisas, quase como se o ar se enchesse de drogas, parou o tempo, tempo demais.
Sair de dentro de nós matou-te em mim.
Mas pensar que morreste, torna-se mais fácil do que pensar que não me quiseste.
Nunca te apaixones por um artista.
A arte só está aos olhos de quem a vê, e há coisas que o mundo precisa de ver.




Comentários

  1. parece que escreves o que penso... obrigada por isso! apaixonei-me por um artista e pra'lem das memórias tenho tambem as músicas que fez, o que torna tudo mais dificil. beijos inês, continua

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