Amar para sempre.

Como é que nos despedimos de alguém que amámos? Pior. Como é que nos despedimos de alguém que amamos?
O meu avô tem setenta e três anos e apaixonou-se pela minha avó quando ela ainda era uma miúda a descer a rua de bicicleta. Ia à janela quando a ouvia rir. Ficava a namorá-la do outro lado do muro, a imaginar se um dia iriam partilhar algo mais do que sorrisos, e corridas de bicicleta.
Ele diz que se apaixonou antes ainda de a conhecer.
Se alguém acredita em almas gémeas, então eles foram uma. 
Todos os dias penso milhões de frases que quero dizer ao meu avô. Mas não consigo. Tenho uma facilidade enorme em escrever, mas pouca facilidade em falar de certos assuntos ao vivo.
Em nove meses, perdeu dez quilos na cara, dez horas por dia a segurar a mão da minha avó, e dez anos de vida.
Eu sempre disse que o amor pode matar alguém. É tóxico, engana e ofusca-nos. Mas nunca pensei que o que digo fosse realmente verdade. Porque sei lá, tenho tantas certezas, mas tenho o dobro das dúvidas.
Nunca tinha visto ninguém morrer por amor, mas agora vejo.
Todos os dias, a mesma posição, o mesmo olhar chorão, a mesma vontade de voltar atrás no tempo e dizer tudo aquilo que mesmo sem saber, tem vindo a dizer ao longo dos mais de cinquenta anos que esteve ao lado da mulher que amou.
No inicio, quando ainda havia esperança, como em qualquer história de amor, encheu-lhe o quarto de poemas. Já mal se via parede. Era o quarto mais melancólico e ao mesmo tempo mais apaixonado do Hospital de Faro.
 Na minha ignorância e necessidade de iniciar uma conversa, perguntei-lhe o porquê de lhe escrever tantos poemas todos os dias... Ele respondeu-me que quando a avó acordasse, tinha de saber que nem por um momento, ele tinha saído do lado dela. Cada poema datado. Cada poema novo mais cansado, e mais fatigado.
Passeavam todos os dias de mão dada, trocavam carinhos em público e tanto ele como ela, tinham sorrisos tão bonitos um para o outro, que encadeavam qualquer casal de adolescentes que lhes passasse ao lado.
Eu queria ser um dia amada de tal forma, como o meu avô ama a minha avó. Agora já não sei se quero. O que o amor dá, o amor tira.
Quase que parece um presente envenenado, mandado para a nossa vida para testar os nossos limites. Quantas vezes precisa uma rapariga de bater com a cabeça na parede para compreender que o namorado que a traiu, continua-a a trair? Quantas vezes dizemos a nós mesmas que desta vez as coisas vão ser diferentes? Que toda a gente muda? Que as oportunidades fazem de nós soldados e valentões no campo do amor? Sei lá eu. Já perdi a conta.
Do dia para a noite as coisas desapareceram. O meu avô chorou ao pé de mim todos os dias, quando entendeu que nunca mais ia ouvir a voz da minha avó. Eu chorei ao lado dele.
 Dia após dia, sempre num quarto de hospital de mão dada com a mulher que um dia, lhe deu mais a mão que todos nós juntos. Lembra-se de quando tinham vinte anos, quando trocavam cartas, quando a beijava sem hora marcada. A primeira e a última vez que fizeram amor. Quando a viu a primeira vez grávida, e quando viu a minha mãe grávida de mim. 
Recorda-se da comida dela, do cheiro dela, da pele dela, do sorriso dela, e do amor que ela sentia por ele. Aquele amor que não retribuirmos por já estarmos habituados a sentir, torna-se parte de nós. Duas vidas tornam-se numa. E viver a metade não dá a mesma pedalada.
Olha para ela e diz-me que continua a ser a mulher mais bonita do mundo. Mesmo que ali já não esteja a pessoa que um dia foi.
De certa forma tomamos as coisas como garantidas. É o nosso sub-consciente a lutar contra algo que está à vista de todos. Lutamos porque somos valentes, porque somos amor.
Chega a casa e deita-se sozinho. E dói-me o coração ao imaginá-lo a deitar-se sozinho, numa casa tão cheia da mulher dele. Numa casa tão grande, que construíram em conjunto.
Confessou-me no outro dia que dorme agarrado à moldura de uma fotografia tão antiga, que já nem se lembra de quando a tiraram. Que assim o coração lhe fica mais quente.
E eu olho para ele e penso que afinal, não sei assim tanto de amor como julgava saber. Que ainda tenho que comer muito pão, chorar muito, e perder muito para compreender que há amores e amores.
Pedi tantas vezes para poder voltar atrás. Erro comum entre nós mulheres.  Choramos sempre por cima do leite derramado e pedimos forças a qualquer coisa que não conhecemos nem sabemos o que é, para nos dar uma segunda oportunidade e podermos voltar com o tempo atrás.
Até ao dia em que encontramos realmente um motivo para querer que ele volte atrás mais que nunca. Erros cometidos em noites, em tardes, em manhãs, deixam de ter importância quando um amor morre. Um verdadeiro. Daquela espécie que está em extinção. Cai um bocado de céu, perde-se mais uma cor.
Depois de muito olhar para o meu avô a tentar-se despedir da minha avó, compreendi que a dor nunca passa. Apenas arranjamos espaço para ela.






Comentários

  1. Tive saudades dos teus textos, por favor começa a escrever um por semana!!

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  2. eu perdi o meu avó há um ano atrás e só quando parei para pensar na dor que a minha avó sentia é que me apercebi, assim como tu, que "ainda tenho que comer muito pão, chorar muito, e perder muito para compreender que há amores e amores", o deles era muito parecido ao dos teus avós, e se por um lado é triste, por outro aquece-me o coração saber que há amores assim e que também ainda podem haver...
    muita força para o teu avô, para ti e para a família!

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  3. Os meus avós também tinham esse tipo de amor que, de certo modo, nunca morre. Eu vejo pela a minha avó que, mesmo depois de o meu avô ter morrido há nove anos, o continua a amar como sempre o amou...E isso. a meu ver, é tão triste quanto belo. Apesar de tudo quero viver um amor assim, tão verdadeiro e imortal.
    O que custa mais é ver que ela sente saudades dele todos os dias do seu melhor amigo e que sofre por ele não estar mais ao pé dela.
    Lamento o que estás a passar.
    Desejo-te muita força, para ti e para toda a tua família.

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  4. Excelente texto. Vejo a minha avó nele.
    "A dor nunca passa" só se torna um bocadinho mais suportável a cada dia que passa.
    Escreve com mais frequência que eu adoro os teus textos! Beijinhos*

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  5. Lindo, parabéns. Vejo os meus avos neste texto, era um amor tão forte que so sobreviveram um sem o outro 24 horas certas. Continua assim

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  6. Tenho a certeza de que se perguntasses ao teu avô se ele repetiria tudo ele diria que sim com toda a certeza. É uma história linda :) E há que continuar a acreditar no amor, por mais triste que às vezes possa ser a felicidade ultrapassa-o. Sei que um dia irás ter uma história de amor assim. Quando ao teu avô, um dia reencontrá-la-a. Até lá, dá-lhe do teu amor, um amor de neta também é bonito!

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  7. http://sadisthenewgorgeous.blogspot.pt/ experiência académica em expansão! :)

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  8. Sei bem o que isso é! O meu avô morreu quando a minha mãe tinha 6 anos, era muito novo, mas o amor dele e da minha avó era assim. A minha avó sempre o amou, mesmo depois da sua partida.. Ela própria o dizia quando ainda estava lúcida e capaz. Sei que desde o dia em que ele partiu, ela é uma pessoa mais triste.. afinal, levaram-lhe um bocadinho dela. Depois de perdermos alguém que amamos tanto, tornamos-nos mais tristes. Mas também aprendemos a lidar com isso! Assim como a minha avó se tornou um exemplo e uma fonte de inspiração por criar os 6 filhos e continuar a lutar, mesmo triste, mesmo sem um pedaço dela, após a ferida começar a amenizar e ele aprender a lidar com a perda, ele também vai ser um exemplo e uma inspiração. Faltam-nos amores como os de antigamente.. amores verdadeiros e duradouros! Amores a sério. Beijinhos e muita força!

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  9. Que texto triste e lindíssimo ao mesmo tempo.
    É triste quando perdemos um pouco de uma pessoa, de dia para dia. Passei o mesmo com o meu avô e, até hoje, nada me entristeceu tanto.
    Gostei muito do que escreveste e adorei o blogue.

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  10. quando voltas a escrever mais textos? tenho saudades da tua escrita alegre e apaixonada por alguem e pela vida

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  11. Eu nunca vi um amor desses. Eu já li um amor desses, já ouvi falarem de um amor desses. Mas nunca o vi. É dificil pensar que, no Séc. XXI, como a sociedade está montada, existe espaço para que duas pessoas se unam numa só e vivam em pleno uma com a outra... Eu gostava de ser um amor desses, eu gostava de chegar todos os dias ao final de um dia e pensar que tive o melhor dia da minha vida porque embora pudesse estar tudo de pantanas, eu teria o sentimento que faria mudar tudo e todos. É isso que falta à humanidade, é por isso que o Mundo perdeu a sua cor, cheiro e brilho... Acho que talvez, mesmo os menos crentes, têm de voltar a pensar nisso. Mas vais bem, espero que um dia tenhas a sorte da tua avó. Porque sim, foi sorte e para sempre ficará. M

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